No meio do dia, entre 10h e 15h, o Nordeste brasileiro se transforma em um laboratório do futuro energético, e também, em um retrato das contradições da transição verde no Brasil.
Durante essas horas, a região frequentemente produz mais energia solar do que consegue consumir. O resultado? Energia limpa e disponível é simplesmente desperdiçada. Usinas solares e eólicas precisam ser desligadas pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) para manter a estabilidade da rede, em um paradoxo que simboliza o descompasso entre o avanço das renováveis e o uso inteligente dessa produção.
Os números ilustram bem essa distorção
Em setembro, o Rio Grande do Norte se destacou como o estado mais sustentável do Brasil em termos de energia limpa e, ao mesmo tempo, bateu um recorde negativo de desperdício de energia renovável. Segundo dados do ONS analisados pela consultoria CarpeVie, em parceria com o Centro de Estratégias em Recursos Naturais e Energia (CERNE), o estado foi responsável por 36,01% dos cortes de geração renovável em todo o Brasil no mês de setembro.
Esse fenômeno, conhecido como curtailment, ocorre quando usinas eólicas e solares precisam reduzir ou interromper sua produção devido à falta de capacidade da rede de transmissão.
As perdas são expressivas
De acordo com o CERNE, o prejuízo acumulado no setor de energia renovável no Brasil desde 2023 já supera R$ 5 bilhões. E no total, em 2025, 70% dessas perdas estão concentradas justamente no Nordeste, com destaque para Bahia (35,14%) e Rio Grande do Norte (25,43%). Outros estados nordestinos também aparecem na lista: Piauí (9,42%), Ceará (7,58%), Pernambuco (3,03%), Paraíba (1,79%) e Maranhão (0,62%).
Esses dados revelam que o Nordeste, líder na geração de energia limpa do País, também é a região que mais desperdiça esse potencial. E o motivo é claro: a infraestrutura de transmissão ainda não é suficiente para escoar toda a energia gerada, e a demanda local não absorve tudo o que é produzido nos horários de pico solar.
Mas e se, em vez de tratar o excedente como um problema, o transformássemos em oportunidade?
Uma política pública que garantisse gratuidade de energia entre 10h e 15h no Nordeste poderia representar um verdadeiro divisor de águas. Se implementada de forma planejada e focada em horários de comprovada sobra de geração, a medida não traria custos adicionais ao sistema, ao contrário, instauraria uma nova lógica de consumo. Isso porque os geradores não teriam aumento de despesas e deixariam de acumular prejuízos ao evitar o descarte do excedente de energia, que poderia abastecer milhares de residências e negócios justamente nos períodos de maior produção.
Além disso, a iniciativa seria especialmente positiva para o setor de geração de energia limpa, ao estimular a adesão de novos consumidores ao mercado livre de energia e à geração distribuída, fortalecendo ainda mais a transição energética no País.
Ao oferecer energia gratuita em períodos estratégicos, o Brasil poderia: aumentar a competitividade industrial regional, reduzindo custos para pequenas e médias empresas e incentivando a instalação de novos empreendimentos produtivos; atrair projetos de alto valor agregado, como plantas de dessalinização, unidades de produção de hidrogênio verde e polos de irrigação agrícola; gerar emprego e renda, diversificando a economia local e fortalecendo cadeias produtivas em áreas historicamente menos desenvolvidas. Mais do que um alívio tarifário, seria uma forma de converter desperdício em desenvolvimento.
Outros caminhos, como o armazenamento em baterias, a instalação de data centers e a expansão das linhas de transmissão, também são essenciais e complementares. Mas essas soluções demandam tempo, investimentos pesados e coordenação regulatória. Já a gratuidade em horários de sobra é uma medida simples, factível e com impacto imediato, capaz de redesenhar o equilíbrio entre oferta e demanda enquanto as demais estruturas evoluem.
A energia não é apenas algo que produzimos, é um bem que precisamos aprender a usar bem. O Nordeste tem hoje o privilégio e o desafio de gerar mais do que consome. Transformar essa abundância em vetor de desenvolvimento regional é o próximo passo lógico da transição energética brasileira.
Se há horas do dia em que desperdiçamos energia limpa, por que não transformá-las em horas de prosperidade? Essa sobra pode e deve virar desenvolvimento.
*Gustavo Ayala é CEO do Grupo Bolt





