Em redes sociais como o Instagram e o TikTok, vídeos e ilustrações de uma figura curiosa têm sido reproduzidos dezenas de milhares de vezes.
Com cabeça de leão e corpo de cobra, o “personagem”, de vez em quando, aparece junto a outros memes e figuras populares da internet, como o influenciador de futebol Luva de Pedreiro e Davi Brito, ex-participante do reality show Big Brother Brasil (BBB).
Geralmente, os conteúdos misturam humor nonsense, música melancólica, frases filosóficas e a tal figura curiosa.
Trata-se do “demiurgo”, uma ideia milenar que agora está sendo ressignificada na internet.
O “demiurgo” surgiu na Grécia Antiga, na obra do filósofo Platão, como um deus que organizou o mundo.
Depois, foi reinterpretado pelo gnosticismo, um movimento nos primeiros séculos do cristianismo com vertentes existindo até hoje.
Na internet, há cerca de uma década, ressurgiu em fóruns como o 4chan e em comunidades red pill (grupos que exaltam a masculinidade, frequentemente misóginos).
Nos últimos meses, o demiurgo furou a bolha para alcançar as redes sociais mais populares.
“É um meme sobre ‘estar preso nesse mundo horrível’. É uma piada da internet, mas que se apropriou de uma ideia para explicitar um sentimento contemporâneo”, explica Luciane Belin, pesquisadora do NetLab (Laboratório de Estudos de Internet e Redes Sociais) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Afinal, quem é o demiurgo?
A palavra “demiurgo” vem do grego antigo dēmiourgos, que significa “artesão” ou “operário público”.
A figura surgiu no diálogo Timeu, escrito no século 4 a.C. pelo filósofo Platão.
O demiurgo aparece como uma espécie de artesão cósmico responsável por dar forma ao universo.
Diferente de um criador ex nihilo — expressão em latim que significa “a partir do nada” e que designa um Deus que cria o mundo sem matéria prévia —, o demiurgo platônico trabalha com uma matéria já existente, caótica e desordenada, que ele organiza.
Na filosofia platônica, há o mundo sensível, onde os homens vivem; e o mundo das Ideias, perfeito e eterno, onde impera a essência verdadeira das coisas.
Inspirando-se no mundo das Ideias, a força do demiurgo molda a realidade sensível para torná-la a mais bela, racional e ordenada possível.
Platão afirmava desejar que “todas as coisas fossem boas e nada fosse mau”.
Assim, o cosmos platônico é resultado de um ato benevolente, ainda que limitado pela imperfeição da matéria. Nesse contexto, o demiurgo aparece como uma figura positiva, símbolo de harmonia e ordem.
Essa conotação do demiurgo começou a mudar em alguns segmentos do gnosticismo, um conjunto de tradições religiosas dos séculos 2 e 3 que reinterpretaram elementos do cristianismo e da filosofia helênica (correntes que sucederam Platão, do período entre as conquistas de Alexandre, o Grande, em 336 a.C., até o 30 a.C, quando o Império Romano dominou o Egito).
Em textos desse período, como o Apócrifo de João e a Hipóstase dos Arcontes — provavelmente escritos entre os séculos 2 e 4 depois de Cristo, redescobertos na biblioteca de Nag Hammadi, no Egito, em 1945 —, o demiurgo aparece como um ser arrogante e ignorante, muitas vezes identificado com o Deus do Antigo Testamento.
Chamado de Yaldabaoth ou Saklas, ele é descrito como o governante que aprisiona as almas humanas em corpos e em um mundo material corrompido, afastando-as da divindade verdadeira.
No fim do século 2, o bispo Irineu de Lyon escreveu a obra Adversus Haereses (“Contra as heresias”).
Seu objetivo, como um dos primeiros teólogos da Igreja Católica, era denunciar e refutar aquilo que considerava “heresias” que ameaçavam a ortodoxia cristã nascente — isto é, atacar outras correntes, incluindo o gnosticismo, para defender e propagar o cristianismo.
Nesse livro, Irineu descreve a sua visão de como diferentes grupos gnósticos entendiam o demiurgo: não como o Deus bom, mas como uma divindade menor.
Segundo Irineu, esses grupos acreditavam que a verdadeira salvação não dependia da fé na encarnação ou na ressurreição de Cristo, mas sim da gnose — um conhecimento esotérico que permitia ao ser humano despertar a centelha divina aprisionada dentro de si e, assim, retornar à divindade que está além do demiurgo.
Gnosticismo
Essa ideia não é compartilhada pelo gnosticismo contemporâneo no Brasil, diz Marcus Bonassi, um dos representantes voluntários do Instituto Gnosis Brasil.
A entidade está presente em todas as capitais, tem mais de 100 sedes e cerca de 3.500 membros ativos, segundo Bonassi.
Ele diz que é um erro classificar o gnosticismo apenas como uma religião.
“É muito mais uma forma de pensamento, de entendimento lógico das coisas, que muda totalmente a forma de raciocínio”, diz.
As fundações do gnosticismo contemporâneo vêm dos princípios difundidos pelo colombiano Samael Aun Weor (1917-1977).
Ele disseminou suas ideias pelos Estados Unidos e por vários países da América Latina na década de 1950.
Em seu primeiro livro, de 1950, Matrimônio perfeito, ele afirmou que a energia sexual era a força mais poderosa da natureza e que, se direcionada de maneira “correta”, poderia levar ao despertar espiritual e à conquista da gnose.
O orgasmo seria uma dissipação da energia vital, e a gnose exigiria um redirecionamento dela para outras atividades, como a meditação.
Historiadores das religiões apontam, no entanto, que essa vertente é sincrética (combina diferentes crenças e/ou visões de mundo), não necessariamente fiel ao gnosticismo dos primeiros séculos.
Em sua tese de doutorado, apresentada em 2022, o teólogo Luiz Antônio Pinheiro definiu o gnosticismo como um movimento sincrético de caráter filosófico, religioso e iniciático (que envolve ritos de iniciação).
Segundo Pinheiro, o gnosticismo foi capaz de sobreviver por séculos, até hoje, pela sua “enorme capacidade de adaptação às instituições, às religiões e grupos sociais”.
O movimento também conseguiu sobreviver às diferentes perseguições ao longo dos séculos, pois era praticado “em pequenos grupos, sem se fazer notar ou atuando discretamente”, escreveu o teólogo na tese, apresentada à Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, em Belo Horizonte.
Da história aos fóruns online
Uma nova reinterpretação do gnosticismo e do demiurgo aconteceu online — e ainda antes do TikTok.
A partir da década de 2010, os conceitos circularam em fóruns como o 4chan e o Reddit, onde foi associado a teorias conspiratórias, ideias de manipulação da realidade e discursos de crítica à modernidade.
Nessas comunidades, o demiurgo aparece como metáfora para “sistemas corruptos” ou “programadores ocultos” que controlariam a vida social.
Ideias esotéricas foram também apropriadas, dentro dos fóruns, na metáfora das pills (pílulas), nascida com o filme Matrix (1999).
Nele, o protagonista Neo pode escolher entre tomar a pílula azul (blue pill) e permanecer na ilusão confortável, sem saber sobre a verdadeira realidade; ou tomar a pílula vermelha (red pill) e despertar para a “verdade” dura e escondida, mesmo que dolorosa.
Na internet, red pill passou a simbolizar “acordar” para uma suposta verdade oculta — especialmente no universo da “machosfera”, virou uma filosofia com ideias misóginas que rejeita valores igualitários de gênero.
Os homens são classificados por cores de pílulas de acordo com sua relação com o mundo e com as mulheres — os blue pill seriam aqueles que permaneceriam conformados com o “sistema” e submissos a elas.
Nos fóruns, surgiu uma variação irônica das pílulas: a pílula verde (green pill), que remete ao gnosticismo e a outras ideias filosóficas e esotéricas.
Nesse universo, o personagem green pill vê o mundo como uma prisão governada pelo demiurgo — e o verdadeiro despertar consistiria em reconhecer que a realidade é manipulada por essa força.
Assim, os adeptos da green pill, ao se voltarem para questões filosóficas e espirituais, simplesmente ignorariam a “realidade” vista pelos red pill, que frequentemente zombam desse estereótipo.
Luciane Belin, pesquisadora do NetLab/UFRJ, explica que esse tipo de apropriação faz parte de uma lógica mais ampla de reaproveitamento de símbolos antigos em subculturas digitais.
“A estética simbólica serve para criar uma espécie de coesão identitária, marcar fronteiras como quem está dentro desse grupo e quem está fora”.
O demiurgo, nesse contexto, se descola dos sentidos gnósticos originais, para virar peça retórica.
“Essas comunidades usam uma linguagem filosófica, flertam com a questão da religião de uma certa forma para dar autoridade intelectual e espiritual aos seus discursos. Essa apropriação de símbolos antigos dá uma espécie de verniz de profundidade”, diz Belin.
Para Marcus Bonassi, a viralização do demiurgo deturpa o sentido original dessa figura para o gnosticismo — que, aponta, não “antropomorfiza” (representa como uma pessoa) o demiurgo.
“É uma força que atua na natureza e no universo, inclusive dentro do ser humano, que tem a capacidade e a responsabilidade de criação. Gnosticamente, não existe o bem e o mal. O demiurgo é a representação das três forças da criação — pai, filho e Espírito Santo, ou Brahma, Vishnu e Shiva, no hinduísmo, ou ainda próton, elétron e nêutron, na ciência”.
“Quando a pessoa faz aquilo que ela desconhece, brinca com qualquer tipo de coisa. Na minha visão, não sabem o que estão fazendo”, lamenta Bonassi, referindo-se à apropriação do demiurgo na internet.
Agora, ao furar as bolhas dos fóruns e se popularizar mais, o demiurgo aparece como espécie de vilão nos memes: alguém tenta se livrar do mundo imperfeito em que vivemos, pela gnose, e é impedido por ele.
Ele também “contracena” com outros memes e personalidades.
Muitos dos vídeos são feitos por inteligência artificial (IA) e têm aparência lo-fi, estética típica da internet que manipula elementos vintage (com aparência antiga e/ou clássica).
Nos comentários, não é incomum que internautas questionem o que é o demiurgo ou de onde veio o meme.
Luciene aponta que, nos levantamentos do laboratório, o demiurgo apareceu de forma ainda restrita, mas ligado a memes nonsense e a conteúdo pessimista e de autodepreciação.
Assim, o meme capta uma parte do clima social.
“Não são só os homens da machosfera que sentem essas coisas. Se você for pensar, é toda uma questão até de capitalismo mesmo. A gente está mesmo preso nesse mundo horrível”, diz, rindo, a pesquisadora.
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