O “Prêmio de Engenharia Rainha Elizabeth” (QEPrize, “Queen Elizabeth Prize for Engineering”), concedido anualmente, homenageia “inovações ousadas e revolucionárias na área de engenharia que trazem benefícios globais para a humanidade”. Criado em 2012, em 2025 a premiação laureou sete engenheiros e cientistas que contribuíram para o desenvolvimento da inteligência artificial (IA): Yoshua Bengio (Montreal, Mila Institute), Geoffrey Hinton (Prêmio Nobel 2024), John Hopfield (Prêmio Nobel 2024), Yann LeCun (NYU e Meta), Jensen Huang (CEO Nvidia), Bill Dally (ex-Stanford, Nvidia) e Fei-Fei Li (Stanford, ex-Google).
O jornal inglês Financial Times publicou uma matéria sobre o “QEPrize 2025” intitulada “Pioneiros da IA afirmam que a inteligência geral em nível humano já é uma realidade” (06 de novembro). No entanto, essa afirmação não é referendada nas declarações dos laureados citadas no próprio texto. Por exemplo: “Quanto tempo levará até que, se você tiver um debate com uma máquina, ela sempre vença? Acho que isso certamente acontecerá dentro de 20 anos” (Hinton), e “Não vejo nenhum motivo pelo qual, em algum momento, não seríamos capazes de construir máquinas que pudessem fazer praticamente tudo o que fazemos. É preciso ser imparcial e não fazer grandes afirmações, porque há muitos futuros possíveis agora” (Bengio).
A matéria conclui: “Os pesquisadores e investidores mais otimistas estimam que a IAG será alcançada em 2 anos, enquanto outros sugerem que esse marco ainda está a décadas de distância”.
O que explica o descompasso entre a manchete (chamativa, polêmica) e o texto da matéria? O indicador atual de sucesso da mídia: quantidade de “cliques”, que sinaliza o engajamento, ou seja, o interesse da audiência. Os modelos de negócios das redes sociais, impulsionados por algoritmos que priorizam o engajamento em detrimento da precisão, colocam em risco o conteúdo informativo e de qualidade (custo oculto dos cliques). O compartilhamento instantâneo nas redes sociais, ou seja, a forma como a notícia é consumida, influencia não apenas as manchetes, mas igualmente como as narrativas são construídas e distribuídas.
No caso do Mercado de Capitais, a lógica é centrada em expectativas, que influenciam os preços das ações, as decisões de investimento e a volatilidade das bolsas de valores. O processo de formação das expectativas é dinâmico e baseado em múltiplas fontes, desde componentes racionais, como comportamento passado e projeção de resultados futuros, até irracionais, como fatores psicológicos (sentimento, viés).
O preço das ações reflete a expectativa coletiva do mercado em relação ao desempenho futuro da empresa: quando os resultados reais superam as expectativas, o preço tende a subir; resultados decepcionantes, tendem a causar queda. Ou seja, a volatilidade do mercado de ações reflete a (in)consistência entre as expectativas e a realidade.
A Salesforce, líder global em CRM (Customer Relationship Management), ilustra bem essa condição. Em outubro de 2024, seu CEO, Marc Benioff, publicou um ensaio na revista Time, da qual é proprietário, exaltando a iminente revolução a ser causada pelos “Agentes de IA” e anunciando a liderança da Salesforce com o seu agente “autônomo” “Agentforce”. Nas semanas seguintes, as ações da Salesforce subiram mais de 50%, atingindo o pico histórico em dezembro.
No entanto, um ano depois, as ações estão em queda livre. Kristi Valente, diretora de operações de vendas da Almo Professional AV, uma grande distribuidora de eletrodomésticos e eletrônicos, declarou que a demonstração do Agentforce deu a impressão de que a tecnologia era muito mais fácil de configurar e menos dispendiosa; embora tenha adquirido o sistema em abril, ainda não o implementou por falta de expertise interna e de consultores externos (4 de novembro de 2025, Business Insider).
Desde o lançamento do ChatGPT, em novembro de 2022, as ações da Nvidia subiram 1.100%, atingindo em novembro de 2025 o valor de 4,846 trilhões de dólares – a título de comparação, a capitalização total da B3, bolsa de valores brasileira, gira em torno de de 5 trilhões de reais. Segundo o Financial Times (16 de outubro de 2025, Of course it’s a bubble”: AI start-up valuations soar in investor frenzy”), 10 startups de IA que ainda operam no prejuízo, como OpenAI, Anthropic e xAI, somam valor de mercado de quase US$ 1 trilhão, financiadas por investimentos de capital de risco de US$ 161 bilhões em 2025.
O mais surpreendente é que essas startups não têm projeção de lucro no horizonte. Esse cenário, sustentado igualmente por expectativas, compromete a sustentabilidade do mercado de capitais e tem sido interpretado como uma potencial “bolha da IA”.
Essas avaliações sem fundamento real são infladas, em parte, por formas de financiamento cruzado entre empresas de tecnologia, prática denominada pelos analistas de “loop circular de valorização artificial”. O fenômeno decorre de acordos recentes entre OpenAI, Nvidia, Oracle, AMD e Broadcom (multinacional americana de semicondutores com sede em Palo Alto, Califórnia). Em final de setembro/começo de outubro, a OpenAI firmou acordos com a Nvidia, Oracle e AMD, gerando em poucas horas US$ 300 bilhões em valor de mercado; a NVIDIA anunciou uma ‘carta de intenção’ para investir até US$ 100 bilhões em 2026; Oracle anunciou um contrato de US$ 300 bilhões em 5 anos, começando em 2027; AMD prometeu chips e deu à OpenAI o direito de adquirir até 10% da empresa, mas apenas se as metas futuras forem atingidas.
Ou seja, nenhum documento assinado, nenhum dólar trocado, nenhum documento encaminhado à SEC (CVM americana). “A OpenAI promete gastar bilhões em GPUs da NVIDIA. A NVIDIA compra mais hardware. Oracle revende infraestrutura, suas ações sobem, o capital aumenta e o ciclo se repete. O dinheiro real não sai do lugar, mas os números nas bolsas disparam. É uma coreografia perfeita”, pondera o Financial Times.
A OpenAI, dona do ChatGPT, solução de IA generativa mais popular, fechou 2024 com prejuízo de 5 bilhões de dólares. Em 2025, a previsão é de gerar US$ 12 bilhões de receita, o que representa apenas 20% dos US$ 60 bilhões anuais em custo de infraestrutura (Fonte: FT). “O mercado está se autoalimentando com expectativas e não com entregas. Estamos assistindo não a uma revolução técnica, mas a um teatro de especulação, onde as promessas valem mais que os produtos”, conclui o FT.
O paralelo entre a manchete do Financial Times sobre o Prêmio de Engenharia Rainha Elizabeth e a valorização das empresas de IA no mercado não é mera coincidência. Ambas são sintomas de uma mesma dinâmica: a “Economia da Expectativa”, onde narrativas e projeções futuras adquirem um valor de mercado e um poder de engajamento superiores aos fatos concretos e aos resultados presentes.
No âmbito da mídia, a lógica dos cliques recompensa o sensacionalismo, corroendo a integridade informativa e dificultando o debate público fundamentado. No mercado de capitais, a mesma lógica, traduzida em expectativas de crescimento exponencial, descola valuations astronômicas da realidade financeira e operacional das empresas. O “loop circular de valorização artificial” é o equivalente financeiro de uma notícias que se espalha e ganha credibilidade simplesmente por ser compartilhada, sem um lastro na realidade.
O risco final, portanto, vai além de uma correção de mercado pontual ou de uma manchete enganosa. É o risco de um déficit de confiança generalizado. Se prevalecer a desconexão entre promessa e entrega, a credibilidade da mídia, a solidez do sistema financeiro e, por fim, o próprio ritmo de inovação responsável podem ser comprometidos.
A verdadeira contribuição da IA, com benefícios globais como almeja o QEPrize, depende não do hype de expectativas, mas de uma base sólida de transparência, implementação real e valor mensurável.






