MILÃO, ITÁLIA (FOLHAPRESS) – O Vaticano divulgou nas últimas semanas documentos que aprofundaram, em estudos e análises internas, temas polêmicos da Igreja Católica, alguns deles divisivos entre religiosos e fiéis.
Publicadas em novembro, duas notas sobre questões doutrinárias reúnem princípios e orientações sobre o casamento, a monogamia e o papel de Maria, mãe de Jesus. Já um relatório pós-sinodal, que saiu no último dia 4, tratou do acesso das mulheres ao diaconato.
Embora os dois primeiros textos tenham sido aprovados pelo papa Leão 14 e o terceiro tenha sido liberado por ele para publicação, as atividades que resultaram nos três documentos tiveram início ainda no pontificado de Francisco, morto em abril aos 88 anos.
Essas publicações autorizadas por Leão 14 indicam mais uma linha de transição entre os dois papados do que sinais do que deverá compor o legado do americano Robert Prevost, eleito em maio. Também a primeira exortação apostólica assinada pelo atual pontífice, sobre os pobres, começou a ser escrita por Francisco.
De toda forma, Prevost afirmou, no fim de julho, que deve seguir algumas políticas de Francisco, como o acolhimento de católicos gays e mais abertura para mulheres em cargos de liderança, mas que não pretende promover grandes mudanças na doutrina católica. Entenda a seguir os três documentos recentes.
O REDENTOR É UM SÓ
Publicada em 4 de novembro, a nota doutrinal “Mater populi fidelis” (mãe do povo fiel, em latim) traz questões que fundamentam a devoção a Maria, esclarecendo quais títulos são corretos e quais devem ser evitados para se referir à mãe de Jesus.
Ao longo de 80 parágrafos, o texto diz que “mãe dos fiéis”, “mãe espiritual” e “mãe do povo fiel” são os mais indicados. Por outro lado, chamar Maria de “corredentora” é visto como “inconveniente” e “inoportuno”.
A redenção é entendida como o ato de Jesus de redimir, de salvar a humanidade com sua crucificação e morte. O papel de Maria é alvo de estudos, e chamá-la de corredentora, por ela ter acompanhado Jesus na cruz, no ato de redenção, é um debate polêmico, ao qual o Vaticano busca colocar fim.
“Levando em consideração a necessidade de explicar o papel subordinado de Maria a Cristo na obra da redenção, é sempre inoportuno o uso do título de corredentora para definir a cooperação de Maria”, diz o texto, assinado pelo cardeal argentino Víctor Manuel Fernández, chefe do Dicastério para a Doutrina da Fé que foi um forte aliado do papa Francisco.
“Este título corre o risco de obscurecer a única mediação salvífica de Cristo e, portanto, pode gerar confusão e desequilíbrio na harmonia das verdades da fé cristã.”
O termo, segundo o documento, tem origem no século 15 como “correção à invocação de redentora (como abreviação de mãe do redentor) que Maria vinha recebendo desde o século 10”.
Em outro trecho é explicado que a obra da redenção foi “perfeita e não necessita de acréscimo algum”. “Nossa Senhora não quis tirar nenhum título a Jesus. Ela não pediu para ser uma quase-redentora ou corredentora: não. O redentor é um só e este título não se duplica”, diz o documento.
A nota lembra que os papas Francisco e Bento 16 foram contrários ao uso do “corredentora”, enquanto João Paulo 2o pronunciou o termo ao menos sete vezes.
Com o novo texto, o Vaticano buscou reforçar o papel de Maria como intermediária entre Deus e a humanidade, descartando uma possível concorrência com a Santíssima Trindade (Deus, Jesus e Espírito Santo). Mas parte dos católicos entendeu como um “rebaixamento” da sua importância.
UNIÃO ÚNICA E EXCLUSIVA
Também assinada pelo cardeal Fernández, a nota doutrinal “Una caro” (uma só carne, em latim) é, como diz seu subtítulo, “um elogio à monogamia”.
Publicada em 25 de novembro, foi motivada por debates travados com bispos do continente africano, inclusive dentro do Sínodo da Sinodalidade, de 2021 a 2024, sobre a prática da poligamia entre católicos, entendida como parte da cultura local.
O texto nasceu também da “constatação que diversas formas públicas de uniões não monogâmicas -às vezes chamadas de ‘poliamor’- crescem no Ocidente”.
Segundo a nota, foi levado a sério “o atual contexto global do desenvolvimento do poder tecnológico”, que leva o ser humano a se considerar “uma criatura ilimitada”. “Dessa forma, o valor do amor exclusivo, reservado a uma única pessoa, é facilmente obscurecido.”
Com 156 parágrafos, o documento reforça que a exclusividade conjugal, entre “um só homem e uma só mulher”, surge não como uma limitação, “mas como a condição de possibilidade de um amor sobrenatural que, além da carne, se abre ao eterno”.
Apesar de não aprofundar a questão do divórcio, ressalta que as duas propriedades do casamento, unidade e indissolubilidade, são interligadas. “A indissolubilidade deriva como característica de uma união única e exclusiva. […] A unidade-união, aceita e vivida com todas as suas consequências, torna possível a permanência e a fidelidade que a indissolubilidade exige”, diz a nota.
O documento, que percorre como o casamento foi visto ao longo do tempo do ponto de vista teológico, por papas e filósofos, não chega a ser uma surpresa ou controverso, mas chama a atenção por abordar temas íntimos e a sexualidade, definida por Francisco, como lembra o texto, como “um presente maravilhoso criado por Deus”.
Em um dos trechos, a nota afirma que a sexualidade não “se limita a garantir a procriação”, mas ajuda a enriquecer e fortalecer “a união única e exclusiva” e o sentido de pertencimento mútuo.
ELAS, AINDA NÃO
Nos documentos finais do Sínodo da Sinodalidade, o tema do diaconato feminino foi aquele que atraiu mais votos contrários dos participantes, entre bispos, cardeais e leigos, incluindo mulheres. Em meio à divisão, o papa Francisco pediu que uma comissão especial analisasse a fundo o tema. O resultado desse trabalho foi divulgado no último dia 4.
O relatório, assinado pelo cardeal italiano Giuseppe Petrocchi, afirma que a pesquisa histórica e a investigação teológica excluem “a possibilidade de prosseguir na direção da admissão de mulheres ao diaconato entendido como grau do sacramento da ordem”. Sua publicação foi um pedido do papa Leão 14.
Apesar de a avaliação ser “sólida”, ela não permite, diz o texto, “formular um julgamento definitivo, como no caso da ordenação sacerdotal”. Ou seja, apesar de não dar sinal verde para que mulheres sejam nomeadas como diaconisas, esse trecho indica que o debate pode continuar.
Os diáconos, que hoje só podem ser homens, inclusive casados, são o primeiro degrau na hierarquia católica, abaixo de sacerdotes e bispos. Eles podem realizar batizados, casamentos e funerais, mas não podem celebrar a eucaristia, ouvir a confissão ou realizar a unção dos enfermos.
Para o cardeal Petrocchi, antes de avançar na questão do acesso às mulheres ao diaconato, é preciso fazer uma “análise crítica rigorosa e ampliada” sobre o diaconato em si mesmo, “sobre sua identidade sacramental e sua missão eclesial”, esclarecendo aspectos estruturais e pastorais que atualmente não estão totalmente definidos”.






