Como boa empreendedora, Daniela Binatti enxerga soluções invisíveis aos outros. Aos 13 anos, indo para a aula de datilografia, avistou uma escola de computação e se matriculou no curso de programação. Na tela preta, viu um futuro em tecnologia. “O que me encantou foi a possibilidade de resolver problemas”, diz. Anos depois, ao lado de três colegas de trabalho – a irmã, Juliana Motta, o marido, Marcelo Parise, e Ricardo Josua –, ela criou uma plataforma de arranjos de pagamento para a empresa onde trabalhavam. Era o piloto da Pismo, fundada em 2016.
No auge da carreira, Binatti parou para estudar novas tecnologias e enxergou a oportunidade de trazer o setor financeiro – e seus antigos sistemas – para o século 21, com uma plataforma em nuvem para os bancos modernizarem seus produtos e competirem com os nativos digitais. Assim, a Pismo conquistou clientes como BTG, Citibank e Itaú, alcançando 117 milhões de contas no mundo em agosto de 2024.
Só o que a empresária não anteviu foi a proposta de compra recebida pela Visa: em 2023, a startup foi adquirida por US$ 1 bilhão – maior M&A de uma fintech brasileira. Nesta entrevista a Pequenas Empresas & Grandes Negócios, a CTO (diretora de tecnologia) compartilha sua trajetória e sua visão para novas empresas de finanças e para mulheres na área de tecnologia.
Seus pais sonhavam com uma carreira em banco para você. Como você mudou de rota e foi para a área de tecnologia?
Meus pais estudaram até os 9 anos. Para eles, um emprego estável em banco era o que havia de melhor, então era o que eles queriam para mim.
Mas, enquanto eu estava fazendo datilografia, vi que do lado tinha uma escola de computação. Achei aquilo muito novo, interessante, e quis fazer um curso. Na época, nem havia linguagem visual de computação, a gente programava em Clipper. O que me encantou foi a possibilidade de executar, criar, resolver problemas.
Quando o Windows chegou aqui, convenci meu pai a comprar um computador. Não teve jeito: me apaixonei por desenvolvimento de software. Consegui uma bolsa e comecei um curso de tecnologia no Mackenzie em 1995.
Você foi além do desenvolvimento de software e se especializou em infraestrutura, certo?
Isso. Sempre fui muito inquieta: se o computador estava lento, eu queria desmontar e resolver. No meu primeiro estágio, aprendi a solucionar problemas de rede, de infraestrutura.Quanto mais eu avançava no desenvolvimento de software, mais percebia que, para me aprimorar, eu precisava entender de infraestrutura. Por isso, construí minha carreira sobre essas duas áreas. Até chegar a diretora de infraestrutura e tecnologia, fiz muito backoffice de operações, banco de dados, qualidade, testes.
Por que, já como diretora, você decidiu começar de novo em uma startup?
Eu trabalhei por 16 anos na Conductor [empresa de call center], que foi onde se formou a Pismo. Nós quatro trabalhamos juntos lá. Nossa história começou como um grupo de pessoas que tinha o desafio de construir, do zero, uma plataforma de processamento de pagamentos. Como diretora, eu era responsável também pela estrutura física. Não eram só os servidores: estou falando das instalações elétricas, de telecomunicações. Metade do meu dia era conversar com a concessionária de energia e as operadoras. Minha equipe trabalhava de final de semana. Essa jornada superlonga estava muito pesada para mim. Minhas filhas eram pequenas, e eu queria um trabalho mais flexível. Resolvi estudar tecnologias emergentes para prestar consultoria. Fiz um treinamento de arquitetura em nuvem na AWS [Amazon Web Services] e um curso de big data, e vi que poderia solucionar muitos problemas com essas novas tecnologias.
Qual era o problema que vocês queriam resolver?
O mercado financeiro, incluindo as empresas de processamento de pagamentos, ainda opera muito com sistemas legados, desenvolvidos na década de 1960. Rodar em nuvem poderia resolver os gargalos que impediam essas empresas de inovar e concorrer com os bancos digitais que estavam surgindo no Brasil.
Só que, para oferecer um produto novo, as empresas enfrentam um dilema: comprar um software pronto – que é uma caixa-preta, muito difícil de personalizar – ou desenvolvê-lo internamente, nessa infraestrutura superantiga, que poucos profissionais no mercado entendem.
As operadoras de cartões, por exemplo, ainda funcionam com um protocolo chamado ISO 8583, lançado em 1987.
E qual foi a solução oferecida pela Pismo?
Para mim, a solução seria fazer o processamento de pagamentos totalmente em nuvem, e que os clientes o usassem como SaaS [software as a service]. Queríamos oferecer uma plataforma que não fosse uma caixa-preta, que as empresas pudessem personalizar para suas necessidades.
Nossa oferta é diferente porque operamos na camada de infraestrutura. Entregamos todos os blocos para o cliente construir a sua solução e só pagar pelo que usa. É um caminho intermediário entre comprar e desenvolver software. Nós construímos toda a fundação para que o cliente não precise se preocupar com os sistemas antigos. Entregamos um conjunto de APIs [interface de programação] para as empresas construírem seu melhor produto.Comecei a desenhar o que seria essa solução e passei um ano convencendo os meus sócios de que a gente podia, de fato, fazer algo diferente.
Como vocês transformaram essa ideia em um MVP (produto mínimo viável)?
Passamos quase um ano desenhando produto e modelo de negócio. Dividimos as tarefas: eu fiquei à frente de infraestrutura, a Juliana cuidava de produtos, o Marcelo ficou com engenharia, e o Ricardo liderava a parte financeira e comercial. Nós quatro fizemos o MVP.
Como nossa experiência era com o varejo, queríamos oferecer uma solução acessível para empresas de menor porte e democratizar o acesso aos meios de pagamento, pois só grandes varejistas tinham cartões próprios. O custo de implementar essa operação era muito alto, mas poderia ser reduzido com o SaaS. Com o MVP finalizado, conseguimos três ou quatro clientes pequenos e começamos a rodar.
No entanto, a Pismo hoje é uma solução para grandes empresas. O que mudou?
Com o MVP pronto, fomos buscar investimento. Passamos bastante tempo na rua, conversando com potenciais clientes e investidores, para ajustar e amadurecer a oferta de valor da Pismo e o nosso pitch.
Essas conversas abriram as portas para recebermos o primeiro investimento seed em 2016, da Redpoint eventures. Tivemos sorte: naquele momento, a Redpoint estava lançando o [hub de inovação] Cubo com o Itaú, e nos apresentou ao banco.
Aproveitamos para entender melhor as dores desse setor e fomos lapidando o produto. Essa experiência nos mostrou que o gap de tecnologia no setor bancário também era grande. Ou seja, ali tinha um problema que a gente poderia resolver.
Migrar sistemas de pagamento de um banco para a nuvem assusta, não? Como vocês conseguiram vender uma solução inédita para um público tão conservador?
A proposta foi realmente assustadora para eles… Foi muito difícil, porque não existia autorização nem regulamentação no Banco Central para armazenar dados financeiros em nuvem pública.
A maioria das nossas reuniões não era com os times de tecnologia, e sim com o jurídico e o compliance. Os bancos tinham medo de mexer no que estava funcionando. Ao mesmo tempo, estavam usando sistemas muito antigos, sem flexibilidade para lançar funcionalidades diferentes.
E os bancos digitais estavam chegando com novidades e mais agilidade para competir. O nosso pitch foi muito direcionado para “vamos fazer um teste?”, e não para convencer os bancos a migrar sua plataforma para a Pismo. A gente era visto como um mal necessário (risos).
Para acalmar os bancos, propusemos configurar o produto que eles queriam, lançar alguns cartões para o time testar internamente e evoluir para novas funcionalidades, e depois migrar para um portfólio maior.
O tipo de sistema que vendemos para fazer uma migração de dados é quase um transplante de coração. Nós estamos no centro de um ecossistema, conectados com operações cruciais. Por isso o cliente precisa de suporte consultivo para fazer essa integração.
Naquela primeira conversa com o Itaú, resolvemos fazer diferente. Construímos um motor de migração que permite fazer essa transferência no ritmo de cada cliente, testando, observando. Fizemos uma plataforma que permite emitir cinco, dez cartões. Isso não existia: na época, a escolha era migrar tudo ou nada. Então, oferecemos esse meio-termo.
Parece um processo bastante personalizado. Como vocês conseguiram ganhar escala?
Como a Pismo começou com clientes pequenos, com soluções sob medida, havia muita desconfiança dos investidores se seríamos capazes de crescer em escala. Foi um desafio. A configuração de uma operação como essa demora muito, não traz receita de um dia para o outro. Ouvimos muitos “nãos” dos investidores.
Só pudemos pensar em escalar quando entendemos como entregar as APIs [conjunto de ferramentas, protocolos e rotinas que permite a comunicação entre sistemas] para as empresas construírem o seu produto. Acho que esse foi um dos grandes fatores de sucesso da Pismo.
Hoje, no mundo todo, os clientes têm produtos completamente diferentes que rodam na mesma plataforma. Com um código-fonte único, somos capazes de escalar muito mais rápido, inclusive para outros países.
Em 2023, a Pismo fez 3,7 bilhões de transações no mundo, que movimentaram US$ 220 bilhões. Como vocês cresceram nessa escala?
Depois do seed, nós estávamos nesse processo lento de expansão, buscando aporte para ampliar a solução. Daí veio a pandemia: assinamos com a Redpoint para receber investimento série A, e três dias depois tudo fechou. Só que acabou sendo um superacelerador, porque mostrou, na prática, todo o poder de ter uma solução de pagamentos baseada em APIs. Nossos clientes foram para o comércio eletrônico usando as nossas APIs. Os bancos tiveram que migrar serviços das agências para um aplicativo. A pandemia acelerou em dez anos esse processo no setor bancário.
Como os juros estavam muito baixos, o capital era abundante. Então, em 2021 conseguimos levantar uma rodada série B de US$ 108 milhões [liderada por SoftBank, Amazon e Accel] para viabilizar nosso processo de expansão internacional para Europa, Estados Unidos e Ásia.
Vocês planejavam vender a Pismo?
Não! Já trabalhávamos com a Visa, e, vez ou outra, havia uma conversa de oportunidade de integração, porque a Pismo é o elo que entrega muitos dos produtos das bandeiras de cartões. Quando a Visa disse que queria adquirir a Pismo, a gente não esperava. Nossa primeira reação foi dizer: “A empresa não está à venda!”. Eles pediram para apresentar uma proposta, então optamos por explorar essa possibilidade.
Um fator decisivo para fechar com a Visa foi a expansão internacional. Sabíamos que a conversa de uma startup brasileira com um banco gigante americano ou europeu é muito assimétrica. Ter o suporte institucional de uma empresa do porte da Visa é importante para a Pismo conquistar esses mercados.
Desde o começo, acreditamos que a Pismo era capaz de estar em qualquer instituição financeira do mundo. Ter uma empresa como a Visa nos apoiando é o que vai transformar em realidade o nosso sonho de deixar um legado.
Como você vê o panorama para as fintechs que estão chegando agora?
Hoje, o acesso aos fundos não está mais tão fácil, mas existe muito mercado para inovação em fintech. Para mim, o foco em soluções é o futuro. Startups especializadas em produtos específicos, que vão entrar no ecossistema para entregar uma experiência, um produto novo, muito mais rico para o cliente final.
Há muito espaço para a transformação. E ainda tem muito por vir na preparação das fundações, do backend [base e infraestrutura para o funcionamento da aplicação], para as tecnologias que estão avançando. Estamos falando muito de inteligência artificial generativa, mas, olhando para os sistemas, a fundação precisa estar pronta para recebê-las. Não tem como explorar IA em um sistema desenvolvido nos anos 1960.
É raro ver mulheres ocupando o cargo de CTO. O que falta para termos mais mulheres CTO, CIO e CEOs na área de tecnologia?
Temos muito para evoluir. Mas vejo um movimento de avanço, de preocupação em trazer mais mulheres para trabalhar na área [de tecnologia], para fazer parte dos conselhos, para assumir uma posição de liderança.
É uma questão que não começa no mercado, e sim no nível da educação. Precisamos atrair mais o interesse das meninas, das mulheres, por tecnologia, por se capacitar para ocupar essas posições.
E tem um trabalho casado, das lideranças, de trazer mulheres para essas posições. Só assim vamos conseguir fechar essa lacuna.